26 de abril de 2009

'Leite' derrama fluente jorro ilógico da memória

Resenha de livro
Título: Leite Derramado
Artista: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
Cotação: * * * *

A memória é uma vasta ferida. É um pandemônio. Tais definições escapam da mente do ancião Eulálio, o protagonista do quinto envolvente romance de Chico Buarque, Leite Derramado. Com o fino acabamento recorrente na sua obra musical, o compositor tece narrativa fluente sobre os devaneios e os fatos - e o texto nunca esclarece os limites entre uns e outros - da vida de um centenário em seu leito de morte. Ao contrário do que pensa o senso comum, a memória é um arquivo ilógico. A engenhosidade do texto de Chico repousa justamente na construção de narrativa que vai e volta no tempo em questão de linhas, com naturalidade. À medida em que jorram os pensamentos nem sempre conexos de Eulálio, o leitor vai reconstituindo (na medida do possível) os fatos de sua vida e de sua família. E nem a linha do tempo surge reta. Ao esboçar o retrato de sucessivas gerações da dinastia dos Assumpção, o autor acaba por montar painéis (superficiais) ora do Rio de Janeiro colonial, ora da atual cidade partida pelo império das drogas e da violência. O parentesco da narrativa com a obra de Machado de Assis (1839 - 1908) - apontado em algumas críticas de tom superlativo por ser o autor de Leite Derramado quem é - é frágil e não se sustenta ao fim, ainda que a permanente incerteza da infidelidade da mulher de Eulálio, Matilde, remeta a Dom Casmurro. E nem é preciso forçar paralelos de tal natureza para reforçar a maestria do escritor, já que a habilidade do autor com as palavras continua ímpar e já nem surpreende - até porque, do ponto de vista das letras, a obra musical de Chico Buarque continua tão vigorosa quanto antes (o que decaiu foi a qualidade de suas melodias). Tal maestria no trato com as palavras torna prazeroso o mergulho do leitor na mente turbulenta de Eulálio e faz de Leite Derramado o melhor livro de Chico Buarque. Aos poucos, o escritor está ficando tão sedutor quanto o compositor...

6 Comments:

Blogger Ju Oliveira said...

Legal vc ter escrito sobre o livro, Mauro. Ainda não li, mas acho difícil ser melhor que Budapeste. Acho esse livro lindo, absolutamente deslumbrante mesmo.

Embora vc tenha razão sobre o fato de que existe uma crítica puxa-saco que vai sempre falar bem de qualquer coisa que o Chico fizer, há tb aqueles que desprezam o trabalho dele como escritor simplesmente por achar que os livros já vão automaticamente receber mais atenção do que merecem.

Só um toque: embora o nome da personagem seja Capitu, o romance do Machado de Assis se chama Dom Casmurro.

um abraço.

26 de abril de 2009 às 17:54  
Blogger Mauro Ferreira said...

Grato, Ju, pela observação. Pensei em Capitu com a imagem da série de TV do Luiz Fernando de Carvalho.

26 de abril de 2009 às 18:00  
Anonymous Anônimo said...

Por que nosso REI - esse aí é que "O Rei" de fato, não aquele - tem de ser bom escritor também ?
Sacanagem. Não sou de ler, meu negócio é música, portanto, agora tenho de esperar a divulgação, as vendas, e a "metamorfose" para compositor/cantor de novo e um próximo grande disco.
De qualquer forma: É "O CARA".

26 de abril de 2009 às 18:26  
Anonymous Anônimo said...

Escritor Chico, eu cito o anônimo para pedir que a mutação ocorra mais rapidamente que o usual pois tô com uma saudade do compositor mestre e do cantor "envergonhado" que até dói.
Tem pena de mim, vai.

29 de abril de 2009 às 20:47  
Anonymous Anônimo said...

Não concordo que a qualidade das melodias de CB tenha decaído.
Dos grandes compositores contemporâneos este é o único que permanece com sua grife irretocável.
E o escritor não fica atrás. Condensou uma saga de mil páginas (em mãos menos inspiradas) em um delicioso e digestivo pudim de pão.

30 de abril de 2009 às 20:32  
Anonymous Anônimo said...

Nada decai nesse aí. É gênio.

30 de abril de 2009 às 21:25  

Postar um comentário

<< Home